O incêndio da Notre Dame e a reconstrução de tudo que existe

Estava no telefone com meu namorado quando vi a primeira notícia e, fora de qualquer contexto imaginável, cortei a conversa exclamando “a Notre Dame tá pegando fogo!!”.

Acredito que o mundo todo tenha reagido da mesma forma e passado as horas seguintes entre a surpresa e o horror enquanto assistia às fotos e vídeos da catedral de Notre Dame em chamas. As labaredas saindo do teto, gigantescas, pareciam cuspidas por um dragão. A imagem da torre central toda vermelha e despencando depois de quase 800 anos erguida deve ficar marcada na nossa memória como o momento em que a esperança de que a igreja sobrevivesse ao incêndio começou a ruir.

Uma história de recomeços

A Notre Dame começou a ser construída em 1163 e foi terminada quase dois séculos depois, em 1345. Com 674 anos de história, a catedral passou pela Revolução Francesa, pelas Guerras Mundiais e foi palco de eventos emblemáticos da história ocidental, como a coroação e o casamento de Napoleão Bonaparte e a beatificação de Joana D’Arc.

A Coroação de Napoleão, de Jacques-Louis David

É impossível passar ilesa por tantos séculos, e a Notre Dame não passou. Muitas vezes, ao longo de sua história, a catedral enfrentou saques, vandalismos e destruições parciais de suas estruturas e decorações originais. Durante a Revolução Francesa, por exemplo, foi usada como templo pelas religiões ateístas Culto da Razão e Culto do Ser Superior e várias estátuas foram decapitadas ou destruídas. Depois, ainda durante a Revolução, serviu como depósito de alimentos antes de voltar para a igreja Católica.

Notre Dame no século XIX

Quando Victor Hugo escreveu O Corcunda de Notre Dame, no século XIX, denunciou no livro seu estado de (péssima) preservação e, alguns anos depois, o rei da França ordenou uma reforma que durou mais de 20 anos. No século seguinte, seu exterior começou a sofrer com a degradação causada pela poluição do ar e, pela ação do tempo, algumas estátuas tiveram de ser substituídas. Também houveram “upgrades” como a instalação de um sistema para controlar os pombos, a renovação do órgão e remodelação dos sinos, que foram feitos para soar como os originais.

Mas a deterioração da catedral era maior do que apenas na decoração, o que fez com que o governo francês e a igreja iniciassem uma campanha para sua reforma nos últimos anos. Então, em 2018, foi iniciada a renovação da torre central.

O que sobrou da Notre Dame

Por conta da renovação, as 16 estátuas de cobre que representam os apóstolos e ficavam em volta dessa torre foram removidas para serem limpadas. Isso aconteceu no dia 11 de abril, apenas quatro dias antes do incêndio que, em quinze horas, destruiu o teto, que tinha uma estrutura de madeira do século XIII, e a torre central, que data do século XIX.

A estrutura da catedral se manteve em pé. As icônicas duas torres da frente e os vitrais em formato de flores, também, assim como outros dos famosos vitrais da catedral. O órgão, que tem algumas partes originais dos tempos medievais, foi salvo. As principais relíquias católicas na Notre Dame, a coroa de espinhos e a túnica de São Luís, também sobreviveram, e diversas obras de arte foram resgatadas.

O governo francês se comprometeu em reconstruir a catedral e uma campanha deve ser lançada para arrecadar dinheiro para isso. Alguns milionários franceses já se prontificaram e ao menos 500 milhões de euros foram prometidos.

A história em chamas

Esses 500 milhões de euros são cinco vezes mais do que o valor que a associação Amigos de Notre Dame pretendia arrecadar entre cinco e dez anos para restaurar a catedral. Segundo o site da iniciativa, a Notre Dame estava desesperadamente necessitando ser reformada e “nenhuma parte da construção não foi degradada”.

Apesar de ser um dos monumentos mais famosos da França, a igreja mostrava sinais de deterioração que poderiam, futuramente, comprometer até a visitação. Uma reportagem da Time de julho de 2017 visitou uma área de acesso proibido e notou que, de fato, ela dava sinais de que não estava nada bem, com pedaços caídos e duas partes de uma parede cobertas com madeira. A matéria termina com uma frase do responsável pela associação que parece, hoje, profética: “nós esperamos que ela dure para sempre, mas não poderá sem essa renovação”.

O incêndio da Notre Dame, para mim, evoca as lembranças ainda recentes do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, que foi destruído por fogo no ano passado. Nos dois casos, salta aos olhos a falta de preservação dos monumentos como causa de suas destruições (já que, até agora, considera-se que o incêndio da Notre Dame foi acidental).

Museu Nacional após o incêndio de setembro de 2018

É só um prédio?

O simbolismo de ícones de cultura e história mundiais – tanto a Notre Dame como o Museu Nacional, dadas as proporções de cada um; o Museu Nacional, vale lembrar, tinha “apenas” 200 anos mas era casa da Luzia, o fóssil humano mais antigo do mundo – ardendo em chamas é muito emblemático, ainda mais nos tempos atuais, em que parecemos assistir à desvalorização contínua da cultura e à relativização e esquecimento da história. Por isso, não é “apenas um prédio”, não é só um monumento religioso e, definitivamente, não é tão simples pegar o projeto e reconstruir.

É necessário sentir esses lutos e refletir sobre o que significam e o motivo pelo qual causam tanta comoção.

Acredito que parte do impacto do incêndio da Notre Dame independe da sua religião (considerando que, afinal, trata-se de uma igreja católica) e é termos escancarado, de repente, o fato de que ela não é eterna. A maioria das coisas que consideramos permanentes, que existem desde muito antes de nós e provavelmente permanecerão muito depois podem, a qualquer momento, simplesmente ruir.

Mas, ao mesmo tempo, há algo belo para ver quando pensamos na conservação de monumentos, obras de arte e, consequentemente, na história que é contada por meio deles. Afinal, as pessoas duram muito menos, e a única maneira de ter registros do que outros humanos fizeram por aqui é com suas realizações.

Muitas vezes, conservar esses feitos significa reconstruir e reinventar.

O rosto de Luzia foi reconstruído com base em seu fóssil, que tem mais de 11 mil anos

O Museu Nacional ficou em ruínas com o incêndio de setembro e milhões de objetos e documentos históricos foram perdidos para sempre. Mas, em fevereiro, foi lançado o edital para a reforma de sua fachada. Não será igual à original, mas será uma nova casa para um dos acervos mais importantes do nosso país, que se reergue literalmente sobre as cinzas do antigo. O fóssil Luzia, que enfrentou 11 mil anos até ser encontrado, sobreviveu ao incêndio do Museu Nacional.

Ontem, o teto de carvalho do século XIII da Notre Dame foi destruído, e jamais será recuperado. Mas o novo teto será, com certeza, muito mais seguro do que o anterior, e sua existência permitirá que ela enfrente os próximos séculos abrigando as obras de arte recuperadas e as próximas que forem abrigadas ali.

Assistir à destruição de ícones da história e da cultura é doloroso e significa muito mais do que apenas prédios e objetos pegando fogo. Mas notar que, apesar das tragédias, acidentes, conflitos e descasos eles continuam existindo, sendo recuperados e recriados, pode ser exatamente o tipo de esperança que precisamos.

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Giovana Penatti

Giovana Penatti

Giovana mal pode esperar pela terça-feira à tarde na qual estará tomando um drink numa praia no Mar Mediterrâneo rindo muito de tudo isso. Enquanto isso, escreve sobre viagem e morar no exterior por aqui!