Post originalmente publicado em 23/09/2019.
Há 55 anos, o Brasil sofreu o golpe de 64 e teve início o período da ditadura militar. Até 1985, o país ficou sob o comando de militares. Foram 20 anos de perdas de direitos, censura, atentados, desaparecimentos, exílios e torturas de milhares de pessoas, incluindo mulheres grávidas e crianças.
Praticamente todo lugar que você for no mundo que já passou por um episódio tão sangrento e traumatizante tem um museu ou memorial para guardar a memória das vítimas e educar para que nunca mais aconteça. Por exemplo, em Santiago, há o Museu da Memória e dos Direitos Humanos; Berlim tem o Memorial do Holocausto; em Yerevan, há o memorial chamado Tsitsernakaberd relembra o Genocídio Armênio; na Polônia, é possível visitar o próprio campo de concentração de Auschwitz.
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Mas, no Brasil, é muito raro vermos espaços dedicados à memória da ditadura militar. O mais famoso deles – e, sinceramente, não tenho certeza se não é o único – é o Memorial da Resistência de São Paulo, que surgiu em 2008, 23 anos depois do fim da ditadura.
Onde fica o Memorial da Resistência
O Memorial da Resistência fica bem no centro da cidade. Instalado no prédio onde funcionava o DEOPS e colado na estação Júlio Prestes e na Sala São Paulo, o acesso é fácil. Mas fica numa área tão marginalizada que não seria errado chamá-la de esquecida.
Caminhamos cerca de quatro quarteirões do restaurante onde almoçamos até ele, e passamos por inúmeros dependentes de drogas, que acham abrigo na Praça Princesa Isabel e seus arredores. Então, em frente à entrada da Sala São Paulo, pedimos informação para ir ao Memorial para um vigia que estava perto de uma van da polícia onde se lia “Crack, é possível vencer”.
Dali, andamos por mais alguns metros até chegar à Estação Pinacoteca, que abriga o Memorial. Então, ao passar pela porta automática, a impressão é de ter entrado por um portal, de tão limpo que é o chão em comparação com a calçada que cheira forte a urina. Além disso, o hall é silencioso, com ar condicionado ligado e chão encerado, tão contrastante com a rua que é até estranho passar tão rapidamente de um ambiente para o outro.
Como visitar o Memorial da Resistência
O Memorial fica à direita do hall e tem entrada gratuita. O espaço todo não é muito grande. Então, com cerca de uma hora e meia, é possível fazer uma visita bem detalhada.
Em primeiro lugar, você passa pela sala trata que dos Lugares de Memória. À esquerda, há placas descrevendo lugares na cidade de São Paulo que tiveram importância durante a ditadura militar. Tem de tudo: universidades, associações de bairros, lugares para reuniões contra o governo, locais onde aconteceram assassinatos. Em seguida, à direita, os Lugares de Memória se expandem para todo o estado de São Paulo. E, numa das paredes, há um gráfico mostrando crimes da ditadura num mapa do Brasil.
Na segunda sala, há uma imensa linha do tempo, que vai desde 1889 até 2008 e correlaciona o cenário global, presidente do Brasil e governador de São Paulo na época, fatos relevantes na legislação, mudanças nas organizações políticas, atos de repressão e de resistência. Vale sentar no banco e observar com calma, mas não há muita informação aprofundada sobre cada fato.
Senti muita falta, no Memorial da Resistência, de contexto. A gente sabe sobre a ditadura, estuda na escola, lê sobre ela ao longo da vida, mas a maioria de nós não é uma profunda conhecedora. Achei que faltou um espaço contando a história da ditadura – por exemplo, como chegamos nela e como saímos dela são assuntos que não são abordados. No fim, saí com a impressão de que aprendi mais sobre o DEOPS do que sobre a ditadura em si.
Dentro das celas da ditadura
Depois que passar pelas duas primeiras salas, é possível pegar um corredor estreito que leva para a área onde os prisioneiros tomavam banho de sol. É um corredor estreito, coberto com grades, onde eles podiam passar algum tempo todo dia ao “ar livre”. No fim do corredor, há um espelho na parede toda que dá a impressão dele ser maior do que é; uma maquete na segunda sala mostra que, originalmente, havia uma escada no lugar desse espelho (talvez para a tal guarita onde ficava um guarda com um fuzil que é mencionada num escrito na parede, mas não fica claro).
Então, chegamos às celas. São quatro: a primeira fala sobre a criação do Memorial. Na segunda, se vê uma projeção no centro da sala, onde se veem imagens de fichas de prisioneiros e relatos de como era ficar preso no DEOPS.
A segunda é uma reprodução de cela, com dois colchonetes (mas chegavam a ficar mais de uma dúzia presos na mesma cela), algumas roupas penduradas e muitas inscrições na parede. Essa era a forma de marcar quem tinha passado por ali, fosse o destino final e liberdade ou a morte.
“Pegaram meu bebe para me ameaçar”
Entre os escritos, há alguns que arrepiam; o mais tocante é, de longe, “pegaram meu bebê para me ameaçar – Rose Nogueira”. Rose é jornalista e foi presa em novembro de 1969. Seu filho tinha apenas 33 dias de vida e o delegado ameaçou entregá-lo para o Juizado de Menores. Hoje, ela é presidente do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo (a história de Rose é um bom exemplo do que mencionei sobre falta de contexto: aprendi isso depois, neste site).
Por fim, a terceira cela te convida a se sentar e ouvir relatos de ex-prisioneiros do DEOPS. No centro, há um caixote com uma flor sob um foco de luz; é impossível não fixar os olhos nela enquanto ouve as histórias. Para mim, a flor cumpre dois papeis: como se fosse uma homenagem aos prisioneiros, traz uma sensação de pesar e luto; mas, também, funciona como um símbolo de esperança de que os horrores da ditadura fiquem apenas no passado.
No corredor das celas, há ainda um pequeno recuo onde há se podem ler algumas cartas.
Uma dupla delas é muito emocionante: a primeira, escrita por Nelson, filho do escritor e historiador Joel Rufino dos Santos, conta das férias e pede que o pai vá vê-lo logo, pois sente muitas saudades. A segunda, de Joel para a família, conta sobre o dia a dia preso. Ele fala sobre a saudade que sente da liberdade, comenta o alívio ao ver o céu azul e as estrelas e pede que eles contem os planos para janeiro e fevereiro, para que possa vê-los quando sair da prisão. Não se diz sequer se Joel foi realmente solto, mas o Google confirma que ele preso de 1972 a 1974.
Vale a pena visitar o Memorial da Resistência?
O Memorial da Resistência é um dos poucos lugares no Brasil dedicados a preservar a memória da ditadura militar. A experiência de visitar as celas do DEOPS, onde milhares de pessoas foram presas e torturadas, ajuda a materializar um período que é cada vez mais questionado e relativizado. A ponto de, como você bem sabe, existirem manifestações na maior avenida do país pedindo a volta dos militares ao poder.
E é de graça, e do ladinho do metrô!
Acredito que realmente faz falta para o Memorial da Resistência alguns recursos como áudio-guias, tótens interativos e tudo o mais que vemos em tantos museus. Saí de lá com a sensação de que ficaram muita lacuna de informação, que poderiam muito facilmente se preencher. Tanto que, com um Google rápido, as encontrei para este post.
Em todo caso, se a visita emocionar e inspirar a procurar mais informações sobre o período da ditadura, já é um ótimo começo. Afinal, num país que parece fazer de tudo para apagar sua história – quantos museus você conhece que falam sobre escravidão? Sobre as revoltas populares do Império? Quantos anos você tinha quando passou a falar “invasão” do Brasil em vez de “descobrimento”? – , o Memorial, literalmente, resiste.
Serviço
Memorial da Resistência de São Paulo
Endereço: Largo General Osório, 66 – Santa Ifigênia
Horário: das 10h às 17h30. Fecha às terças-feiras.