O fim do verão

Para mim, toca essa música no fim do verão. Pode dar play e ouvir enquanto lê, se quiser 🙂

Desde que voltamos de Barcelona, o sol já não queima tanto, anoitece por volta das 19h30 e as árvores estão mais amarronzadas. Tenho me sentido introspectiva, ansiosa, até meio perdida. O verão já ficou para trás, e o outono chega ao seu auge em poucos dias, quando a estação oficialmente começa.

Enquanto me aproximo do meu primeiro ano inteiro morando na Itália, vejo a paisagem lentamente ficando parecida com a que eu conheci quando cheguei, e que identifiquei quando vim de novo.

Paisagem de outono na Itália

Na região onde moro, o verão é mais úmido que no Brasil, o que dá aquela sensação de ar parado, de estufa. Mas conheço bem o calor, sei viver com ele. A primavera também é quente, mas nem tanto, e é uma festa de três meses seguidos. Especialmente depois de dias tão curtos, temperaturas de um dígito, uma conta absurdamente alta de gás e a eterna inadequação para me vestir. A cada dia, o sol fica mais tempo, mais flores surgem, pólen, insetos, tem tanta vida por todo lado!

Assistir estações tão definidas é parte do encanto de morar aqui por um ano inteiro pela primeira vez. Percebo como essas mudanças afetam não só o meu dia a dia, mas mexem com o meu coração e com a minha cabeça.

Quatro estações, quatro vidas

Chegada da primavera na Itália

A primavera, que eu tanto esperei, chegou junto da quarentena. Mal pude vê-la. Estava feliz, claro, mas insegura: será que hoje fará calor demais para usar calça jeans? As abelhas estão realmente furando a parede do meu apartamento? Essa sensação esquisita ao respirar é covid ou é pólen?

Passamos boa parte da estação trancados em casa, vendo semanalmente as árvores se adequando a ela como aquela amiga da sua mãe que sempre que te vê fala sobre como você cresceu. Eu queria ter acompanhado mais de perto, ter notado dia a dia as flores que surgiam.

Mas, de dentro de casa, só percebi que algo havia mudado quando a árvore do vizinho, que era só galhos, de repente parecia um pé de pipoca: da noite para o dia – ou, pelo menos, percebi assim – , pequenos buquês de flores branquinhas surgiram por toda parte.

Conforme a primavera avançou em direção ao verão, as flores caíram e a árvore ficou toda verde. Em algumas semanas, quanto os frutos começaram a cair na rua e na garagem do meu prédio, descobri que era uma cerejeira. Acompanhei a vizinha criando uma hortinha aos pés dessa árvore com o marido e vi seus vegetais crescerem numa velocidade inacreditável. Meu vizinho também encheu sua varanda de temperos, e os pés são tão grandes que ficam em baldes e tonéis azuis.

Então, o verão começou a dar sinais que iria chegar junto com uma flexibilização da quarentena.

E, quando chegou, a gente já podia sair de casa normalmente, ir para a praia, andar de bicicleta sem justificativa. Fomos para a praia, andamos muitos quilômetros de bicicleta pelas trilhas perto da cidade, até para a Espanha conseguimos ir. Resumi o verão inteiro em uma semana de sol, sangria, contemplação e muito calor. Aquele calor suado, de férias, mesmo que estivéssemos trabalhando também lá. Minha versão verão espanhol é a minha melhor versão: não usa nenhuma maquiagem, tem as pernas bronzeadas, ri alto pela rua, anda devagar.

Com o verão, também veio uma situação inusitada: precisamos comprar roupas de calor. Afinal, trouxemos na mala só as de inverno, na expectativa que as visitas que receberíamos das nossas famílias e trouxessem nossas roupas mais leves. Ninguém veio. Praticamente, ninguém saiu de casa desde março. É uma sensação muito estranha viver algo tão bonito e não poder dividir com quem você ama; uma culpa por algo que não é culpa de ninguém.

O fim do verão

Então, do nada, chegou o fim do verão. O fim do verão é melancólico. Há dias estou me sentindo assim: melancólica. Sinto os três meses que passaram me puxando de volta, como se eu precisasse olhar para eles agora e entender por que fui tão feliz num verão em que isso parecia impossível.

Quero revivê-lo inteiro, abraçar cada raio de sol até minha pele queimar, como queima em todo lugar, menos em Barcelona. Quero segurar o Sol com as duas mãos quando ele começa a cair no horizonte. Se você vê-lo ir embora um certo número de vezes, consegue assisti-lo escorrer entre os dedos até sumir na paisagem. Eu consigo fazer isso. E sempre, sempre sofro.

Queria ter trazido pedras da praia em Barcelona para deixá-las sob os meus pés no escritório. Queria ter deitado no colo do meu marido na praia e dito mais vezes que o amava. Queria ter andado mais de bicicleta nas quartas-feiras à tarde e ido tomar aquele spritz de cor saturadíssima conversando com as mulheres que mais admiro nessa cidade. Queria ter visto meus ex-colegas de trabalho fora do trabalho, mesmo que me sentisse meio burra por não falar italiano tão bem quanto eles. Queria ter passado um fim de semana em um lago transparente, o próximo fazendo uma trilha, e outro fazendo faxina em casa.

São tantas vidas que não vivi, todas presas atrás do espelho em um ano que ninguém viveu.

Este foi o último sábado antes do começo oficial do outono. Acordamos meio tarde, mas com o céu completamente azul, e pegamos o ônibus para ir à praia. A água estava quentinha, mas com um vento gelado, a cara da meia estação. Cochilamos na areia, tomamos nosso prosecco da garrafa térmica e comemos sanduíches porque ninguém tem grana pra almoçar fora no dia 19 de qualquer mês. A água estava clarinha, apesar de Sottomarina não ser exatamente uma praia bonita, e vimos cardumes de peixinhos e muitos siris. Acho que tinha gente caçando siris, inclusive, com redes e baldes.

O sol ficou até tarde, bem tarde, umas oito da noite, e o vi, de dentro do ônibus, como uma bola de fogo vermelha reluzente, que refletia nas nuvens tons rosados e arroxeados. O céu refletia na água como se fosse um espelho e, enquanto observava lá fora, não fui afetada nem pelo acidente que bloqueou a estrada, nem pelos adolescentes aos berros no fundo do ônibus. Senti a luz avermelhada no meu rosto como se fosse um farol. Não tentei segurar o sol; dessa vez,  deixei ir. Agradeci pelo calor, pelo verão, pedi que voltasse logo. E acompanhei, em piscar, os últimos segundos antes que ele sumisse.

Fim do verão na Itália

O começo e o fim, é o fim, é o começo

Se a primavera simboliza algum tipo de renascimento, o outono, que está no oposto do calendário, provavelmente está relacionado a algum tipo de fim.

Hoje, o sol não saiu. Eu fiquei em casa e passei o dia pensando sobre o tempo. Logo começa o último trimestre do ano, logo faz um ano que estou aqui. Nos próximos três meses, já sei que terei muitas mudanças para viver. São mudanças que invadem minha cabeça como uma onda gigantesca de ansiedade e incerteza.

Tenho medo de ficar fechada em casa de novo, de não aproveitar os dias mais curtos, de ficar sozinha, de não dar conta de tudo. Tento segurar a respiração para não me afogar quando, na verdade, eu queria mesmo é apenas boiar um pouco, mas faz anos que não sei o que é isso. O que eu sei, hoje, é que as coisas mudam, quer eu queira ou não. Afinal, a vida acontece e não se importa se você está isolada em casa, fazendo dupla jornada no final de semana, sentindo saudade ou sonhando acordada.

Fica mais fácil de perceber o tempo passando com quatro estações bem definidas. Mas, às vezes, parece que ele te atropela. Parece que foi ontem que vi o pé de pipoca pela janela. Parece que foi ontem que me mudei para esta casa. Parece que foi ontem que consegui um emprego, e também foi ontem que pedi demissão. Parece que vivi várias vidas em um ano. E, se a diferença entre um fim e um começo é o ponto de vista, que venha a próxima.

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Giovana Penatti

Giovana Penatti

Giovana mal pode esperar pela terça-feira à tarde na qual estará tomando um drink numa praia no Mar Mediterrâneo rindo muito de tudo isso. Enquanto isso, escreve sobre viagem e morar no exterior por aqui!